terça-feira, 5 de setembro de 2017

Capítulo 11
Na casa de saúde, Marina exigia cuidado, vigilância. Entre os
bastidores da luta, empenhávamo-nos nisso, Moreira e nós, e, por
fora, Cláudio e Salomão entrelaçavam energias, garantindo cooperação.


O apoio espiritual, conjugado à Medicina, funcionava com segurança.


Mesmo assim, complicavam-se os problemas em derredor.


Nemésio e Márcia, após cinco semanas no clima da serra, retornaram ao Rio, algo modificados pela aventura. Ela interessada em ligação definitiva; ele, hesitante. Instado a patrocinar-lhe o desquite, recuara, de pronto. Tinha medo. Não receava, porém, as gralhas do mundo social. Temia a si próprio. 


Aquele mês de folga, nos braços da mulher que não esperava, insuflara-lhe inquietação.

Não que Márcia perdesse para ele os encantos com que o seduzira.


Assustava-se consigo mesmo, junto dela. Nas excursões, chamava- lhe “Marina”. Acordava, alta noite, supondo-se com a jovem que aceitara por noiva, sonhava reencontrá-la, qual se estivessem os dois na meninice, e, sonâmbulo, costumava formular confissões de amor, como nos tempos em que Beatriz se derreava no leito.


Por várias vezes, fomos arrancá-lo dessas crises, movimentando recursos magnéticos, anotando-lhe as sensações de alívio, ao verificar que Márcia, experiente e maternal, sabia tolerá-lo, compreendê-lo...


A esposa de Cláudio, a seu turno, não obstante se propusesse cativá-lo, reconhecia o obstáculo.


Percebia claramente que Nemésio trazia a menina fixada à lembrança. O negociante amava-lhe a filha, pertencia-lhe pela alma, embora não lhe recusasse apreço e ternura. De começo, quis estrilar. Em seguida, calculou, como de hábito, e concluiu que não se achava pessoalmente num caso de amor e sim numa transação, cujas vantagens não se dispunha a perder. No fundo, pouco lhe importava que ele adorasse a moça.

Aspirava a prendê-lo, ganhar-lhe a fortuna e a confiança. Para isso engenhava todos os modos de se fazer necessária.


Ordens atendidas, refeições prediletas, gotas estimulantes na hora certa, chinelas a mão...

Solicitado por ela a optar pelo casamento em país que aprovasse o divórcio, Nemésio prometia satisfazê-la; entretanto, de volta ao Rio, preferiu mantê-la em casa de Selma, a companheira que residia na Lapa, mencionando Gilberto. 


Importante não se reunissem de vez, até que lhe conseguisse a mudança. Organizava interesses comerciais em cidade do sul, para removê-lo. Que Márcia aguardasse, e Márcia esperava, apesar de se acharem ambos em conjunção incessante. Passeios, jantares, diversões, noitadas...

Gilberto, no entanto, parecia a si mesmo desacoroçoado, abatido.


Criança sem guia, navegante sem bússola. Sem o menor incentivo ao trabalho e sem âncoras de ideal que lhe governassem os sentimentos, esbanjava o dinheiro paterno. Farra e uísque.


Muita vez, embriagado, falava em suicídio, referindo-se a Marina, distante. Sentia-se derrotado, infeliz. Aqui e ali, ouvia apontamentos desairosos em torno do pai e de Dona Márcia, através de amigos, mas trazia ainda uns restos de nobreza para rechaçar aquilo que considerava invencionice e maledicência. Sabia o genitor descansando e não ignorava que Dona Márcia demandara igualmente o repouso. E, para defendê-los, esbravejava frenético, quase sempre bêbado e atuado por alcoólatras desencarnados, que o manobravam facilmente como se maneja uma taça.


Todavia, no centro das derrocadas, o Espírito Félix reconstruía Após dois meses de tratamento, Marina regressou ao Flamengo, resguardada pelo carinho paterno.


Em horas breves, inteirou-se quanto à nova situação.


Perdera a assistência maternal e não desconhecia os empeços com que devia contar, a fim de reerguer-se na profissão. Informara-se, por intermédio de enfermos recuperados, que se tornava habitualmente muito difícil a obtenção de emprego para egressos de hospício.


A princípio, alimentava complexos, sofria.


Contudo, encontrara um pai cuja grandeza de coração até aliignorara e uma fé que lhe reabilitava a esperança.


Cláudio cercou-a de meiguice e bondade. 


Repletava-se o apartamento de mimos e flores, e os textos espíritas, lidos por vezes com lágrimas, lhe infundiam a consoladora certeza nas verdades e nas promessas do Cristo, que passara a aceitar por mestre da alma. Acolheu a amizade de Salomão, qual se lhe fosse filha, e inscreveu-se entre aqueles que constituíam agora para Cláudio a família espiritual. Interessou-se por singelo serviço beneficente, mantido em favor de pequeninos desamparados, junto de senhoras consagradas ao socorro de irmãs infelizes. E quando o genitor convidou-a para que se afeiçoassem ao culto semanal do Evangelho no lar, recolheu, entusiasmada, a sugestão, rogando a Nogueira instalassem Dona Justa, viúva e sozinha, em definitivo, junto deles em casa. A antiga servidora, contente, foi guindada à condição de governanta, com a segurança de parenta feliz.

A vivenda ressumava tranqüilidade, não obstante, Moreira e nós outros prosseguíamos atentos na defensiva.


Conversações e leituras, tarefas e planos surgiam por flores auspiciosas que Félix, de quando em quando, vinha ver, encantado, partilhando-nos júbilos e orações. Em torno de Nemésio e de Dona Márcia, o silêncio.


Pai e filha empenhavam-se no propósito de olvidá-los, mas Gilberto...

Amigos solicitavam para ele compaixão e socorro.


O rapaz afundava-se. Largado, abatido. Pileques, correrias. Se Cláudio e Marina não pudessem protegê-lo, pelo menos lhe providenciassem a hospitalização.

Como negar-lhe apoio?


Cláudio notou que a filha ainda amava o rapaz enternecidamente, ardentemente, e decidiu-se a respeitar-lhe as decisões.


Após entendimentos ponderosos, atendendo às indicações de Marina, o bancário escolheu a ocasião que lhe pareceu favorável e abraçou-o numa churrascaria do Leme. Partilharam lanche rápido e Nogueira convidou-o para jantar no dia seguinte. Ele e a filha esperá-lo-iam em casa.


Torres filho sorriu e comprometeu-se.


Seis meses haviam corrido sobre a transformação de Cláudio, e maio, ao entardecer, abanava o Rio com as brisas refrigerantes que desembocavam do mar.


Gilberto compareceu no momento previsto. Tristonho, sóbrio.


De começo até à refeição, reportou-se a banalidades, sofrimentos, malogros. Confessava-se fracassado, deprimido. A pouco e pouco, no entanto, compenetrou-se de que se achava entre dois corações que lhe aprumavam os sentimentos e elevou o nível da palavra.


O anfitrião interferia na conversa com a prudência de um pai e a moça exprimia-se com segurança, entremostrando nos olhos o amor e a esperança inextintos.


O visitante experimentava-se reconfortado. 


Conjeturava-se mergulhado num banho de forças balsâmicas. Imaginava-se de retorno ao lar antigo, refletia na mãezinha que a morte arrebatara, e chorou... O chefe da família, comovido quanto Moreira e nós, diante daquela explosão de lágrimas, acariciou-lhe a cabeça e perguntou por que lhes abandonara a amizade.

Gilberto desabafou, noticiando que o genitor o chamara a contas. Denunciara-lhe Marina por jovem desencaminhada. Asseverara-lhe que ele próprio, Nemésio, lhe desfrutara o carinho, descrevera-lhe intimidades, inteirara-o de que a escolhida se desmoralizara, que não servia para casar e ameaçara-o, constrangendo-o, por fim, a alegar que desistia de futura ligação com ela, por sabê-la doente... Afastara-se por semelhantes razões, embora continuasse amando a moça, com quem, aliás, não tinha a intenção de se reconciliar, levando em conta as acusações havidas...


Marina, acabrunhada, não confirmou, nem se defendeu. Restringiu-se a chorar discretamente, enquanto Cláudio se esforçava por harmonizar os dois corações desavindos.


Moreira, que assumira apaixonadamente a defesa da menina, perdeu a calma. Retomou a insolência de que desertara e clamou para mim, em voz alta, que, apesar de possuir seis meses de Evangelho, sentia muita dificuldade para não reunir a turma dos companheiros de outro tempo a fim de punir o velho Dom Juan, com o rigor de meirinho implacável.


Apreensivo, roguei a ele se calasse por amor ao bem que nos propúnhamos realizar.


Moreira assustou-se ao me ouvir a recomendação incisiva.


Expliquei-lhe que, nas imediações, irmãos infelizes teriam ouvido a intenção que ele formulara e quantos simpatizassem com a idéia, com toda a certeza, demandariam a residência dos Torres, sondando brechas.


Vali-me do ensejo para transmitir-lhe avisos que me foram extremamente úteis, nas minhas primeiras experiências de homem desencarnado em processo reeducativo. Disse-lhe que aprendera de vários benfeitores que o mal não merece qualquer consideração além daquela que se reporte à corrigenda. Entretanto, se ainda não conseguimos impedir-lhe o acesso ao coração, na forma de sentimento, é forçoso não se pense nele; contudo, se não contamos com recursos para arredá-lo imediatamente da cabeça, é imperioso evitá-lo na palavra, a fim de que a idéia infeliz, já articulada, não se faça agente vivo de destruição, agindo por nossa conta e independentemente de nós.


Salientei que o ambiente ali jazia limpo de influências indesejáveis; no entanto, ele, Moreira, falara abertamente e companheiros não distantes, interessados em nosso regresso à crueldade mental, teriam assinalado a sugestão...


Gilberto despedira-se.


Moreira, nos apuros do aprendiz que reconhece a prova errada, perguntava o que fazer, mas não tive dúvida. 


Esclarecemos que habitávamos agora o plano espiritual, onde pensamento e verbo adquirem muito mais força de expressão e de ação que no plano físico, e que não nos restava outra alternativa senão seguir, ao lado de Torres filho, de maneira a observar até que ponto se alargara o perigo, a fim de remediá-lo.

O amigo, inquieto, pela primeira vez, depois de muito tempo, deixou o lar dos Nogueiras e acompanhou-me.


Ambos nós, de carro, faceando com o jovem, absorto...


O rapaz entrou em casa, lembrando Marina modificada... Aqueles cabelos penteados com singeleza, o rosto tratado sem excessos, os modos e as frases sensatas e Cláudio a informar, sem queixa, que Dona Márcia, ultimamente, andava sempre fora para descanso, o clima doméstico destilando tranqüilidade... Tudo aquilo era para ele coisa nova, sensação nova...


Sentia-se perturbado, experimentava remorsos pela franqueza de que se utilizara, sem saber se fora ciumento ou descortês.

Instintivamente, tomou a direção do quarto que a jovem ocupara e onde a vira, desfalecente...

Queria recordar-se, refletir.


Seguíamo-lo, obedecendo às disposições do tapete macio; entretanto, ao rodar, de leve, a maçaneta, como quem não pretendia apartar-se do sonho, viu, assombrado, através da porta entreaberta, que o genitor e Dona Márcia se beijavam e, em torno deles, sobressaía, para a nossa visão espiritual, a chusma dos amigos conturbados, para cujos serviços Moreira apelara, inconscientemente...


Aqueles vampirizadores, registrando a indireta, mostravam-se em atividade, metamorfoseando simples impulsos de afeto do par outoniço em voluptuoso arrebatamento.


Nemésio, de costas, foi visto sem ver, qual ocorrera com ele próprio, Gilberto, meses antes, e, como acontecera a Marina, Dona Márcia, situada de frente, observou-lhe a chegada e o espanto que lhe terrificara a fisionomia.


O rapaz afastou-se, na ponta dos pés, mordido de angústia. A dúvida esmagava-o. O ídolo paternal ruíra de chofre. Teria realmente o pai razões verdadeiras para separá-lo da jovem que ainda amava?


De nosso lado, porém, fazia-se indispensável a colaboração em favor de Moreira, arrependido. O amigo avançara para a quadrilha que o complicava, supondo aprazê-lo, oscilando entre a revolta e a paciência.


Interferi, rogando serenidade. Acatássemos Nemésio e a companheira, não tínhamos o direito de escarnecê-los, escarmentá-los.


O bando retirou-se e Moreira transferiu atenções para Dona Márcia, que, suficientemente ladina para criar problemas, não desmaiou, à feição da filha. Raciocinando friamente, desligou-se de Torres pai sem alarde e afagou-lhe a testa, afirmando que viera da Lapa unicamente para vê-lo, porquanto se afligira ao notá-lo indisposto na véspera. Não pretendia lesar-lhe a saúde. Auxiliou-o a deitar-se no leito próximo, de onde evidentemente o amigo se levantara a fim de recebê-la, e, após dirigir-lhe conselhos afetuosos, afastou-se, pretextando a necessidade de se entender com empregadas.


Fora, no corredor, perguntava a si própria de que maneira contornar a dificuldade. Conquanto impassível em se tratando de preservar interesses, ainda era mãe e pensava na filha. Seria justo azará-la, envenenando o ânimo de Gilberto? nada fazer por Marina, reaproximando-os? Não seria desmoralizar-se, de todo, permitindo que o moço a interpretasse por mulher sem escrúpulos, já que talvez um dia viessem a ser madrasta e enteado?


Moreira aproveitou aqueles minutos de reconsideração e enlaçou-a, respeitoso, pedindo-lhe piedade. Favorecesse Marina, apoiando Gilberto.


Buscasse o rapaz, enquanto usufruía oportunidade, conversasse com ele, apaziguasse os jovens...

Enternecido, aproximei-me também dela e supliquei-lhe a intercessão.


Ela podia ajudar. Não tencionava reconciliar-se com Cláudio, queria efetivamente o desquite. Por que não praticar um ato de justiça e caridade para com a filha doente, encaminhando aquele menino entregue à decadência moral ao matrimônio digno?


Recolhera Marina nos braços de mãe, dera-lhe as cantigas do berço, orientara-lhe a infância, preparara-lhe o sentimento para a felicidade...


Como largá-la, assim, num momento em que o destino lhe facultava todos os recursos para estender-lhe as mãos? A esposa de Cláudio, ao impacto dos argumentos que assimilava em forma de reflexões, rememorou o passado e chorou.

Naquele instante, o sentimento pulsava-lhe puro, como na noite em que a víramos, tomada de indignação e de dor, ao defender Marita em casa de Crescina. Entre a consciência e o coração, não havia lugar para o cálculo astucioso. Não titubeou. Dirigiu-se ao aposento de Gilberto, entrou com a sem-cerimônia de mãe que assiste um filho, sentou-se à beira da cama em que o rapaz se abatera, amuado, e falou-lhe, lacrimosa. Principiou, rogando-lhe desculpas.

Em seguida, pediu-lhe permissão para confessar-lhe que ela e Nemésio se amavam, há tempos. E, num rasgo de generosidade que a elevava, mentiu pela felicidade da filha...

Comunicou-lhe que, desde muito, se desligara de Cláudio, cuja presença infelizmente não mais tolerava, e declarou que, antes do falecimento de Dona Beatriz, se tornara íntima de Nemésio, com quem se encontrava, amiúde, em lances clandestinos. Acentuou, com inflexão estudada para impressionar o interlocutor, que errara, lamentavelmente, ao consentir que a jovem se tornasse enfermeira da senhora Torres, porquanto, desde aí, possuía razões para supor que o velho lhe cobiçava a filha.

Reconhecendo-o interessado nela, enciumarase...

Venerava, porém, a grandeza espiritual de Dona Beatriz, a quem estimava de longe, e tivera forças para aguardar-lhe a morte, antes de assumir qualquer atitude. Desfeito o impedimento, resolvera abandonar a casa, em definitivo, a ponto de não se incomodar com a menina doente e acompanhar Nemésio a Petrópolis, onde se demoraram juntos em deleitoso refúgio. E continuou justificando, justificando... Agora que ele a surpreendera nos braços paternos, que lhe perdoasse como um filho, cujo apreço se esmeraria em conservar. Não retornaria ao Flamengo.


Desquitarse-ia de Cláudio, de qualquer modo, e, de qualquer modo, partilharia o destino de Nemésio, enquanto Nemésio o permitisse...

Mesmo assim, era mãe e rogava-lhe por Marina. Se a amasse, que não lhe desse indiferença ou desprezo, num momento como aquele em que se refazia de dura perturbação. Que a protegesse, fazendo pela menina o que ela, Márcia, não mais conseguiria...


A senhora Nogueira finalizara, sinceramente comovida, e vimos sensibilizados os prodígios da compreensão e da bondade num coração juvenil. Olhos chamejantes de júbilo, o rapaz ergueu-se e ajoelhou-se diante daquela mulher que lhe sossegava o espírito, com a versão caridosa de que necessitava para reconstituir o caminho.


Em lágrimas de alegria, osculou-lhe as mãos e agradeceu-lhe em palavras quentes de carinho filial. Entendia, sim – comentou – , que o pai, não obstante bondoso, teria obedecido a sugestões de despeito, a fim de apartá-lo da escolhida.


 Procuraria Marina, prometia olvidar o passado, de modo a não ferir a dignidade maternal com que ela, Dona Márcia, lhe patenteara a nobreza de sentimentos, torturada qual se achava entre a paixão de companheira e o devotamento de mãe. Informou que, na tarde daquele dia, estivera com Marina. Notara-lhe a sinceridade e a tristeza.

Fora rude com ela, espezinhara-lhe o coração, mas voaria naquela mesma hora para o Flamengo e fariam as pazes. Quanto ao futuro, não tinha motivos para incompatibilizar-se com Cláudio; entretanto, já que o desquite se fazia iminente, envidaria todos os esforços para que o genitor e Dona Márcia se consorciassem num país onde o divórcio merecesse aprovação legal.


Da entrevista ao telefone e do telefone a novo encontro com Marina, foi para Gilberto questão de minutos.


Perante os jovens reunidos, Nogueira enlevou-se, regozijando-se em preces de reconhecimento.


Moreira e eu expedimos informações para o irmão Félix, que veio, na noite do dia seguinte, compartilhar-nos as orações de alegria.


Depois de abraçar Cláudio e os dois namorados que demandavam Copacabana, à busca do convívio de Salomão, o benfeitor rumou para a Lapa, em nossa companhia.


Márcia, recostada num divã, fumava cismando, na expectativa da chegada de Nemésio para jantarem na Cinelândia, com um filme subseqüente, mas Félix, magnânimo como sempre, acercou-se dela, ignorando as baforadas, e beijou-lhe a fronte, mostrando lágrimas...


Não dispúnhamos de estatura espiritual para auscultar-lhe os pensamentos sublimes. Observamos apenas que ele a contemplou, enlevado, como quem lhe agradecia a inesperada abnegação, e murmurou, ao despedir-se:


– Louvado seja Deus!


Do dia imediato em diante, azedou-se o intercâmbio entre pai e filho. Nemésio, intrigado; Gilberto, arredio. E, decorridas algumas semanas, ao inteirar-se de que o rapaz e a menina Nogueira passeavam de relações reatadas, o negociante viajou para o sul, em companhia de Márcia, no intuito de situar o filho junto de antigos camaradas de juventude, residentes em Porto Alegre. Por lá se deteve o par, semanas e semanas, trazendo, na volta, expressivo programa de serviço e de estudo que Gilberto, convidado pelo genitor a entendimento, recusou, cortês, desistindo das vantagens que lhe eram oferecidas.


Presenciando-lhes o diálogo em ambiente fechado, consignamos a respeitosa ternura com que o jovem se dirigiu ao genitor, implorando-lhe auxílio. Tivesse a bondade de não transferi-lo, que o deixasse no Rio. Rogava desculpas se o magoava, mas reconhecia-se em maioridade e aspirava ao casamento com Marina, de quem se reaproximara.


Desde cedo, acostumara-se a trabalhar com o pai, a colaborar com ele, na imobiliária. Aguardava-lhe, por isso, a proteção.

Nemésio ouvia, ressentido, revoltado. Marina reconquistada pelo filho significava para ele bancarrota moral insuportável.


Nunca a amara tanto, quanto naquela hora em que se lhe esvaiam as esperanças. Entrevia-se calcado, vencido. A pouco e pouco se desinteressara de Márcia, conquanto a conservasse. Marina significava-lhe mocidade, euforia, entusiasmo, improvisação. Justamente quando ruminava desígnios de recuperar-lhe o carinho, adiantava-se o filho, frustrando-lhe os projetos.


Certificando-se de que Gilberto concluíra, vibrou rude golpe na mesa com uma régua pesada e, enceguecido pela cólera que o envolvia por juba de fogo, esbravejou:


– Nunca!... Você nunca se casará com essa...


E multiplicou pejorativos e desaforos que o moço agüentou, estonteado e ferido. Mesmo assim, depois da tirada de injúrias, retorquindo aos apelos e intimações de última instância, assegurou que saberia tolerar todas as conseqüências, mas não renunciaria ao compromisso que assumira consigo próprio.


O genitor, possesso, entregou-se às vias de fato, esmurrando-lhe o rosto.


Gilberto rodou nos calcanhares e tombou no piso, para reerguer-se e cair de novo sob pancadaria grossa, até que Nemésio, semelhando fera solta, infligiu-lhe tremendo chute, vociferando:


– Rua, miserável!... Rua, rua!... Suma daqui! Não me apareça mais!...


Acompanhamos o menino atônito, que alcançou a via pública tentando estancar com o lenço um filete de sangue a escorrer-lhe num dos cantos da boca.


Daí a quarenta minutos, um ônibus despejava-nos no Flamengo.


Os Nogueiras terminavam o almoço e, antes de rumar para o banco, Cláudio recolheu, junto da filha, o relatório doloroso.


O trio machucado entendia perfeitamente a gravidade da situação.


Nogueira, porém, ofereceu-se para ajudar. Diligenciaria obter para Gilberto um emprego no estabelecimento de crédito em que trabalhava.


Considerava o dirigente por amigo. Solicitar-lhe ia os bons ofícios. Que o rapaz esquecesse os agravos e aceitasse em Nemésio um enfermo da alma.

Gilberto rememorou os segredos de Dona Márcia, condoeu-se do interlocutor e entrou em lágrimas. Aquele homem, muito mais ofendido que ele mesmo pelo pai prepotente, aquele homem espoliado no coração, impetrava benevolência para o seu próprio verdugo.


Marina, que sazonara o entendimento da vida, exortava também à concórdia e ao olvido. E tanto se adestrava em renovação que, após o curativo nos lábios de Gilberto, sugeriu ao pai fosse o rapaz conduzido sem delonga ao gerente. Não se devia perder a oportunidade, nada de lamentar sobre o inevitável.


Ensaiou apontamentos de bom-humor, emprestou comicidade ao drama que lhes cabia viver, endereçando o pensamento ao futuro, e inventou notas alegres para a dificuldade, qual se dependurasse guirlandas numa sala encrespada de espinhos, conseguindo que Torres filho, chorando e rindo, trincasse alguns pastéis, antes de sair.

O diretor de Nogueira acolheu o candidato com simpatia; no entanto, não relacionava meios para colocá-lo em regime de urgência.


Aguardasse um mês. Não se admitiam aspirantes ao serviço, sem provas de habilitação, previamente ordenadas, mas prometia entender-se com os chefes.


Acreditava na possibilidade de aproveitar-lhe o concurso, em caráter de interinidade.

Gilberto agradeceu.


A sós com o protetor, referiu-se com humildade ao problema de moradia.


Afinal, sabia-se expulso de casa a pontapés.
Cláudio tranqüilizou-o.


Certo, não calhava, por enquanto, a presença dele no lar do Flamengo, embora julgasse a medida irrepreensível.


Competia-lhes, porém, imunizar Nemésio contra qualquer novo ataque de fúria. Conhecia pensão de estudantes corretos e pediu-lhe para que não lhe recusasse as garantias. Entre moços respeitáveis, esperaria a convocação. Depois, resgataria os pequenos débitos que viesse a contrair. Que não se vexasse. Acariciou a cabeça do jovem e salientou que se achavam na condição de pai e filho e que, em razão disso, o dinheiro entre ambos deveria ser gasto em condomínio.

O rapaz, não obstante constrangido, aquiesceu.
Daí a algumas horas, ciente de que o genitor se ocupava em serviço, contratou caminhão e colheu da residência os pertences que julgou indispensáveis, sossegando a dedicada governante com a informação de que se ausentava para trabalhar, durante algum tempo, com o pai de Marina, a fim de tentar a sorte.


O comunicado surtiu efeitos imediatos.


Dispensando a possível assistência ao ânimo inquieto de Nogueira, vimos, no dia seguinte, quando Nemésio entrou no banco, às duas da tarde, a esbaforir-se. Enraivado, no centro de vasto grupo de Espíritos galhofeiros, solicitou a presença de Nogueira em recinto particular. Um funcionário acenou para o companheiro e Cláudio veio; mas, pressentindo que seria intimado a rigoroso testemunho de tolerância, preferiu atender no vestíbulo, rente ao
público.


O visitante começou dizendo que lhe exigia contas do filho, acentuando que não lhe permitiria influenciá-lo.


Cláudio mobilizou todas as reservas de humildade e rogou licença para informar que o moço tão-somente o tratava por amigo, sem, no entanto, abdicar do livre-arbítrio; que não se via autorizado a responder por ele; que...


O genro de Neves, todavia, interceptou-lhe a palavra e rugiu:


– Cale-se, besta!... joão-ninguém! paspalhão! Tome lá, seu espírita de meia-tigela!... O punho do negociante batia no rosto de Cláudio, arremessando-lhe pescoções violentos, enquanto a vítima procurava defender-se, debalde, escondendo a cabeça entre as mãos.


A agressão fora rápida.


Antes que os circunstantes se refizessem do choque, o bancário jazia no pavimento e somente a cooperação de intercessores anônimos impediu que o esmurrador asselvajado lhe pisasse o corpo em decúbito. Contido à força, berrava insultos, assessorado por Espíritos infelizes.


O injuriado ergueu-se disposto a revidar. Irado, contundido.


Referviam-lhe no peito as dores acumuladas.


Tomaria desforra. O comerciante audacioso conhecer-lhe-ia o desagravo.

Massacrá-loia naquele mesmo instante como se achata um verme. Num átimo, contudo, ao levantar a destra para medir punhos com o adversário, sentiu o reflexo de Marita. Aquela mão pequena e fria que se elevara da morte, a fim de abençoá-lo, estava na dele. A menina atropelada surgia-lhe na memória, como a perguntar-lhe pelos  votos de melhoria.

Prometera-lhe renovar-se, ser outro homem...

Impossível quebrar o compromisso. Recordou-a padecente, o corpo recoberto de escaras dolorosas. Não tinha sido ele o culpado?


não fora a Divina Providência suficientemente compassiva, deixando que a falta de que se acusava passasse despercebida, à frente dos homens? não recebera, acaso, o perdão da filha que amava? que diria ela, do Além, se também não perdoasse ao carrasco que lhe seduzira a primogênita e lhe furtara a mulher?


Abraçara princípios que lhe preceituavam clareza de raciocínio, a fim de que aprendesse a conjugar bondade e discernimento, justiça e caridade...


Cabia-lhe ver, nos inimigos gratuitos, enfermos exigindo socorro e benevolência. De que modo condenar alguémnaquilo em que se inculpava? Não trazia, porventura, o espírito endividado, em meio de falhas e tentações?

Afrouxou-se-lhe o braço antes reteso e, escutando os sarcasmos de Nemésio que se retirava, truculento, constrangido por pessoas que clamavam em alta voz pela intervenção da rádiopatrulha, o marido de Dona Márcia, encostado à parede, sob os olhares de simpatia de todo o auditório, não se acanhava de libertar o pranto amargo e espesso a pingar-lhe do queixo escanhoado.

O gerente assomou à cena, quando o autor das bofetadas ganhava o meio-fio, e indagou pela causa do tumulto.


Um funcionário emocionado apontou para o colega ofendido, falou no espancamento e aduziu:


– Decerto, não reagiu porque ele hoje é religioso, é espírita...


O chefe comoveu-se. Desejando desfazer o clima geral de indignação, inquiriu, à porta:


– Quem é esse brutamontes de jaula?


Velhinha que esperava atendimento, de caderneta à mão, informou:


– Conheço. É Nemésio Torres, proprietário de lotes e mais lotes...


– Tubarão! – comentou o recém-chegado com inflexão de menosprezo –, onde pensa que estamos?


E relanceando o olhar pelos clientes embasbacados, protestou:


– Gente, nós estamos no Rio!... no Rio!... Como é que vocês soltam um criminoso desses? um caso assim, é polícia, corda, cavalaria, cadeia...


Esbarrou, porém, com Cláudio imóvel e, recompondo-se, abraçou-o para acabar conduzindo-o a saleta distante. Aí, ouviu do subordinado a história da filha e do rapaz que lhe fora apresentado na véspera. Entre revoltado e condoído, autorizou o ingresso do moço no serviço, acrescentando que lhe faria os possíveis vencimentos até que lhe vissem a situação devidamente legalizada.


Na reta final para o casamento, Gilberto conseguiu empregarse, estimado de todos.


Nemésio, contudo, acabrunhado e desgostoso, convidou Márcia para uma excursão de seis meses em países da Europa. Atravessariam Portugal e Espanha, França e Itália, com alguma demora na Suíça. Declarava-se infelicitado pelo destino, desde a morte de Beatriz. Caipora. Malogrado. Anelava mudança, refazimento.


A senhora Nogueira, que cortara os telefonemas para a família, desde Petrópolis, deu-se pressa em comunicar o acontecimento à filha, através de um cartão. Confessava-se esperançosa, encantada.


Seguiria juntamente daquele a quem não trepidava em designar por “futuro esposo” e prometia enviar notícias de cada cidade que visitassem.


Marina recolheu a mensagem com discrição, sem que o pai e o noivo soubessem de semelhantes férias, a não ser indiretamente pela boca de amigos.


A ausência do par traçou, para o trio, bendito parêntese, recheado de alegria e sossego, de ponta a ponta.


O apartamento do Flamengo convertera-se em colméia de paz e luz. E enquanto Moreira resguardava Marina com fidelidade incondicional, retomei estudos e experiências, junto de Félix, embora acompanhando com afetuoso interesse os amigos do Rio, a se prepararem, contentes, para o enlace feliz.


A união esponsalícia de Gilberto e Marina realizou-se precisamente no último dia do ano que se seguiu à desencarnação de Marita. Solenidade marcada por flores e orações, abraços e promessas.


A ventura do novo casal atingiu-nos, igualmente, no “Almas Irmãs”, onde pequena equipe de companheiros se reuniu em prece pela segurança dos nubentes que se entregavam a novas responsabilidades e novas lutas.


Destaquei, no entanto, com desagrado, a ausência da filha de Aracélia. A própria Beatriz compartilhara os júbilos votivos, conquanto desconhecesse completamente o que sucedia, com referência ao esposo.


Félix, porém, ao registrar-me a estranheza, quanto àquilo que eu imaginava como sendo preterição, elucidou que a menina, prestes a regressar para as lides terrenas, demandava cautelas especiais. E prosseguiu aclarando que obtivera permissão para que o processo regenerador do conjunto Nogueira-Torres fosse remodelado. Marita não lograra desposar Gilberto, por influência da irmã; contudo, voltaria a viver entre os dois, na condição de filha, para que a fração de tempo, concedida ao grupo para a existência em comum, no plano físico, viesse a ser aproveitada nos recursos possíveis, sempre valiosos, por mínimos que fossem.


Indiscutivelmente, não se tratava de reencarnação organizada a rigor e nem compulsória, por motivos judiciais. 


Medida, entretanto, de caráter premente que ela seria impelida a aceitar, em favor de si mesma. Para esse fim, ela reveria o Rio, oportunamente, junto de nós, pela primeira vez, depois de quase onze meses de internação em parque de repouso, onde vivera apenas de saudade e recordação, para efeito indutivo. Abraçaria tão-só os que quisesse, atenderia exclusivamente a própria vontade, para que se lhe avantajasse o impulso de voltar.

Compreendendo-se que Gilberto lhe constituiria o tema central das compensações emotivas, sublinhava Félix que todos os nossos cuidados, na ocasião, se concentrariam nele. Seria necessário que Marita o surpreendesse a sós, ignorando-lhe o matrimônio, porquanto os ressentimentos hauridos da convivência com a irmã ainda lhe doíam na memória, quais chagas entreabertas. E, entendendo-se que ambas se reencontrariam, mais tarde, por mãe e filha, em conflito vibratório, visando ao expurgo dos erros e aversões recíprocas que carregavam de remoto passado, era de todo indispensável que a reencarnante dormisse para o renascimento físico, sob a impressão de euforia perfeita.

Aceitando a lógica das explicações, fui avisado, dias transcorridos sobre a conversa, quanto à data escolhida para a excursão.


No instante aprazado, participou-me Félix não só o envio de dois companheiros, incumbidos da preparação de ambiente junto ao filho de Beatriz, como também cientificou-me de que se valia do ensejo em andamento, por sabê-lo em estudos, à noite, na intimidade de vários colegas, numa residência da Glória, com vistas a concurso próximo para a efetivação no cargo que exercia no banco.


Efetivamente, partimos com Marita, calculando o tempo necessário para encontrá-lo fora de casa, prevendo-se o término das tarefas noturnas para depois de zero hora, segundo notificações recebidas.


Cumpriu-se o programa com diminutas diferenças de horário.


Estimulávamos os júbilos de Marita, que descia conosco sobre a Guanabara feérica. De longe, os contrastes de luz, entre o morro do Leme e o casario da Urca, mais além, a praia de Botafogo...


Mais alguns instantes, a Avenida Beira Mar, diante de nós...


Tocando o chão do Flamengo, a moça multiplicava interjeições de alegria, revendo a cidade que lhe senhoreava a ternura.


Parados, diante das águas remansosas, assimilando energias nutrientes da Natureza, fomos inteirados pelos batedores amigos de que Gilberto descera de carro particular em esquina adjacente.


Sem delonga, conduzimos a jovem ao ponto indicado, e, ao identificá-lo, embriagada de ventura, chamou, ansiosa:


– Gilberto!... Gilberto!... O interpelado não lhe registrou a voz com os tímpanos carnais;
no entanto, assinalou-lhe a presença em forma de lembrança.


Recordou, de inopino, aquela que ainda supunha como sendo pupila de Cláudio e tomou direção oposta à que seguiria, parando, além, a fim de refletir e contemplar a bala prateada de lua... Sim, ali, naquelas areias, jurara-lhe amor eterno, planeara o futuro...


Meu Deus! – pensou – como a vida mudara!...


Enlaçado pela jovem desencarnada, desentranhava-lhe a imagem do pensamento, enxugando os olhos...


Félix, contudo, apartou-a brandamente e perguntou-lhe o que mais desejava.


– Viver com ele e para ele!...


A resposta alcançava-nos como um grito de esperança, rebuçado em soluços.


O instrutor, que não aguardava outra coisa, dirigindo-se a ela de modo paternal, ponderou a conveniência de tornarmos ao domicílio.


Empenhar-se-ia por assegurar-lhe o regresso. Que se acalmasse. Retomaria a convivência e a dedicação de Gilberto.

Não aconselhava, porém, se lhe dilatasse o arrebatamento, nocivo a ambos, mesmo porque, muito em breve, estariam juntos.


A menina obedeceu, mas pousou sobre nós os olhos molhados, indagadores. Percebi-lhe no espírito os reflexos de Márcia e Marina; todavia, afastou-lhes a figura do pensamento e inquiriu se lhe era facultado rever Cláudio, acentuando que o pai lhe fora o derradeiro amigo, nas angústias do adeus...


O orientador anuiu, contente.


Mais quinhentos metros de espaço e atingimos o apartamento, acolhidos à entrada por Moreira, vígil. O enfermeiro reconheceu Marita, sob emoção forte, mas eclipsou-se a um aceno de Félix, que desejava poupá-la a divagações. Atormentada, tremente, a moça, assistida por nós, penetrou no aposento paterno e, oh surpresa! Nogueira, em espírito, rente ao corpo que ressonava de manso, como que lhe aguardava a presença, pois estendeu-lhe os braços e gritou, misturando enlevo e regozijo, na exaltação que passou a comandar-lhe todas as forças:


– Minha filha!... minha filha!...


A jovem rememorou os quadros que imaginara no hospital, o suplício das horas lentas, as preces que lhe amenizavam as amarguras, a invariável devoção daquele pai que se lhe redimira no conceito à custa de sofrimento, e ajoelhou-se, diante dele, procurando-lhe o regaço, como quando em criança.


Cláudio, perplexo, não nos via, concentrava-se totalmente na visão a exercer sobre ele inigualável fascínio. 


Afagou com a destra hesitante aqueles cabelos desnastrados que tanta vez alisara, na instituição dos acidentados, e relembrou Marita, nas atitudes da infância, quando vinha da escola, e indagou:

– Filha do meu coração, por que choras?


A recém-chegada endereçou-lhe um gesto súplice e rogou:


– Papai, não se aflija!... Estou feliz, mas quero Gilberto, quero voltar para a Terra!... Quero viver no Rio com o senhor, outra vez!...


Patenteando carinho imáculo, Nogueira conservou-a sob as mãos que tremiam de júbilo e, levantando o olhar para o teto, com a ânsia de quem se propunha romper o monte de alvenaria para dirigir-se a Jesus, diante do firmamento, clamou em lágrimas:


– Senhor, esta é a filha querida que me ensinaste a amar com pureza!... Ela quer retornar ao mundo, para junto de nós!... Mestre, dá-lhe, com a tua infinita bondade, uma nova existência, um corpo novo!...


Senhor, tu sabes que ela perdeu os sonhos de criança por minha causa... Se é possível, amado Jesus, permite agora que lhe dê minha vida!

Senhor, deixa que eu ofereça à filha de minha alma tudo o que eu tenho! Oh! Jesus, Jesus!...

Félix considerou que a emotividade excessiva poderia abatê-lo e recolheu Marita nos braços, recomendando que me atrasasse, no sentido de auxiliá-lo a reaver o envoltório físico enlanguescido.


Retirou-se o instrutor carregando a menina paternalmente, ao passo que Moreira e eu investíamos Cláudio sobre a máquina orgânica em movimento de impulsão. Depois de passe reconfortante, Nogueira acordou em choro convulso, guardando na memória todos os detalhes da ocorrência.


Daí a instantes, ouvimos passos na sala.


Gilberto entrava, de leve. O sogro intentou aprumar-se e chamá-lo para narrar o acontecido; entretanto, assimilou-nos a exortação ao silêncio, para colaborar com o futuro...


Sim – concordou, qual se estivesse conversando consigo mesmo –, a verdade da vida não deve brilhar para a maioria dos homens, senão por intermédio de sonhos vagos, para não confundir-lhes o raciocínio nascituro, assim como o Universo de Deus não pode fulgir para as criaturas da Terra, senão em forma de estrelas, semelhantes a pingos de luz nas trevas, de modo a lhes não arrasar a pequenez...


Entretanto, a certeza de que Marita retornaria ao mundo, reencarnada, iluminava-lhe o pensamento e aquecia-lhe o coração.

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