quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Capítulo 2 
Confrangido, mas sereno, Félix acercou-se de Nogueira, administrou-lhe energias de refazimento e, após levantá-lo, despediu-se, asseverando que voltaria.

Que não me inquietasse, falou, bondoso. Estaríamos juntos, enviaria cooperadores, tomaria providências.


Respondi, sossegando-o. Afeiçoara-me àquela menina que, afinal, era nossa filha em espírito. Não, não a deixaria na dura fase da desencarnação.


Entrementes, Cláudio afastou-se, buscando o especialista.


Moreira, que me observava desde a chegada, fitava-me agora com simpatia, que me empenhava em conservar.


Em dado momento, interpelou-me. Amaciou o tom de voz e disse reconhecer-me. Queixou-se. Vira diversos irmãos desencarnados, avizinhando-se da porta e acenando com asco.


Apontavam Marita com desprezo, referiam-se a figurações despudoradas, traçavam gestos no ar, sugerindo quadros obscenos, e um deles chegara ao desplante de abordá-lo, indagando quem era aquela mulher que transpirava carniça.

Tratei de consolá-lo. Aquilo passaria. Esperávamos companheiros, abastecidos com os recursos necessários, a fim de que isolássemos o recinto.


Satisfazendo-lhe as perguntas, esclareci que, sem querer, assistira ao desastre e condoera-me daquela moça sozinha, jogada no asfalto.


Quis saber minudências; contudo, temendo embaraços, prometi-lhe que, logo aparecesse oportunidade, colheria informes seguros para nós ambos. Tentando harmonizá-lo com as exigências do serviço que nos defrontava, roguei-lhe permissão para cooperar.


Ficaria contente se ele me aceitasse o concurso, ali, ao pé daquela jovem que a provação humilhava. Colhera alguma experiência em hospitais e poderia ser útil.

Moreira comoveu-se e aprovou a idéia. Sim, aclarou, devotava- se a ela, com ardente afeição, e me reconhecia o desinteresse em servi-la. Contaria comigo, reportou-se a compensações. Conhecia meios de auxiliar-me, defender-me-ia, ser-me-ia companheiro fiel.


Em seguida, examinou curiosamente o processo pelo qual a respiração de Marita era auxiliada e pediu-me instruções. Queria substituir-me. E com tanta diligência e humildade se colocou no meu posto que, em minutos breves, atendia à manutenção da jovem, com segurança superior àquela que me esforçava em cultivar.


Procurei adestrá-lo. Obedeceu docilmente e guardou nos braços aquele corpo amarrotado, que se transfigurara num fardo de dor, salpicado de fezes. O perseguidor da véspera, tocado no âmago, enlaçou-a com a dignidade de um homem piedoso que socorre uma irmã, empregando-se no trabalho de instilar-lhe energias e reaquecer-lhe os pulmões com o próprio hálito.


Sensibilizado, ao identificar-lhe a transformação, concluí que nem sempre é o salva-vidas, tecnicamente construído, a peça que assegura a sobrevivência do náufrago, e sim o lenho agressivo que teimamos em desdenhar.


Retirei-me, por instantes, à busca de Cláudio e encontrei-o em compartimento próximo. Valia-se do intervalo, em que era constrangido a esperar pelo médico, para telefonar.


A voz inconfundível de Dona Márcia vinha do outro lado. O esposo falava, sob traumatismo evidente; ela, no entanto, não respondia fora da destreza mental que lhe conhecíamos. Folgava em saber que a filha estava ainda viva. Melhor encerrassem o assunto.


Se a Medicina já estava em cena, desistia de aumentar as aflições que lhe inçavam a casa.

Nogueira passou do noticiário às súplicas. Seria conveniente que ela viesse amenizar a situação.


A senhora, porém, mencionou compromissos inadiáveis. Estava de saída para a aquisição de linhas, destinadas à confecção de vários enfeites encomendados por Marina.


Compreendia que a moça talvez não se recuperasse; entretanto, inclinava-se a crer quetudo não passava de episódio sem importância. 

Marita sempre fora exagerada em questões de sensibilidade, gostava da ostentação de ridículo. Além disso, se estivesse tão mal quanto o marido supunha, ele, na condição de pai, se achava lealmente junto da filha, eximindo a ela, Dona Márcia, de sacrifícios maiores do que aqueles que já lhe sobrecarregavam os ombros. Fez chiste, mascarando de sarcasmo o desapontamento com que recolhia a informação de que a filha adotiva não estava morta, impelindo todos os constrangimentos da família à estaca zero.

Recordou ao esposo que o Rio não era interior e que doente algum se podia dar ao luxo de contar com mais de uma pessoa, acalentando o leito, numa capital que excedia o tamanho de Babilônia.

Declarou-se cansada de bobagens e arrufos entre jovens namorados e afirmou preferir tricotar a fazer adulação para uma filha que não era dela e que sempre timbrara em loucura e faniquito.

Rematava, aconselhando para que não se complicassem com despesas. Que ele ouvisse os médicos e removesse a menina, quanto antes, para casa.

Nogueira, desolado, insistiu, pintando o quadro em que se contristava; entretanto, a senhora encerrou a conversação, atirando-lhe uma frase que lhe despedaçou as últimas esperanças:


– Bem, Cláudio, tudo isso é problema seu.


Nogueira discou para a residência dos Torres. 


Marina ainda não voltara.

Desacoroçoado, chamou para a casa do chefe.


Atendido, prestou sucinto relatório da apertura, indagando sobre a concessão de férias no banco. O diretor sossegou-o. Compreendia a emergência, também era pai. Não apenas despacharia favoravelmente a petição, mas se colocava igualmente ao dispor dele para qualquer eventualidade.

Tornando ao aposento onde Moreira velava, entrou em conversação com o facultativo de serviço.


O médico registrou-lhe a inquietude e compadeceu-se. Asseverou que era cedo para um pronunciamento mais claro. 


Empreenderia exames, prescrevera transfusões de sangue e antibióticos, estudaria as reações. Mesmo assim, não dispensaria a consideração de um neurologista, na hipótese de surgirem complicações, em vista da pancada forte, havida no crânio.

Nogueira concordou e, humilde, solicitou permissão para instalar-se junto da filha. Não se queixaria de preços, advogava para ela o melhor tratamento.


O clínico prometeu cooperar, favorecer.


Daí a instantes, Marita foi novamente transferida de quarto, onde Cláudio, Moreira e eu passamos a intimidade mais ampla.


Aqueles dois Espíritos, que se avalentoavam por bagatela, manifestavam-se agora diferentes, submissos.


O esposo de Dona Márcia trazia os olhos marejados de pranto.


Partira-se-lhe a alma. A convicção de que a filha tentara o suicídio, por culpa dele, requeimava-lhe o coração, qual lâmina esfogueada que se lhe enterrasse no peito. De tantos escândalos escapara, de tantas proezas se ocultara, impassível; entretanto, aquele corpo abatido que a morte espreitava parecia encerrar-lhe o destino. Sentia-se arrasado, a ponto de não lhe importar nem mesmo a confissão de todos os delitos da existência, em praça pública...


Delitos que supunha para sempre esquecidos, nos escaninhos do tempo, assomavam-lhe agora à lembrança, exigindo reparação... Sobretudo, Aracélia!... A genitora de Marita que ele próprio aniquilara, a peso de sarcasmo e ingratidão, parecia alcançá-lo pelo túnel da consciência... A imagem daquela moça inexperiente da roça crescia-lhe por dentro.

Lastimava-se, acusava, perguntava pela filha, pedindo-lhe contas!...

Conjeturava-se Nogueira às portas da loucura.


Não fosse a resolução de recuperar a filha prostrada, usaria o revólver contra si mesmo. Afigurava-se-lhe o suicídio como sendo a válvula de livramento.


Adotá-lo-ia, raciocinava, taciturno. Se Marita morresse, não desejava sobreviver. Cerrar-lhe-ia os olhos e destruir-se-ia sem compaixão.

Ao passo que as reflexões amargas lhe obscureciam a mente, colava-se Moreira aos pulmões da triste menina, num espetáculo comovedor de paciência e dedicação. De minha parte, assinalava-lhe o devotamento sincero, os propósitos puros. O corpo injuriado não lhe inspirava repugnância.


Enlaçava Marita com a veneração de quem se consagra a uma filha padecente para quem todos os cuidados e todos os carinhos são sempre escassos...

De quando em quando, passava uma das mãos no rosto para enxugar as lágrimas...

Aquele Espírito que eu conhecera áspero e agreste amava profundamente, porque é preciso amar a alguém, com extremada ternura, para sorver-lhe com alegria o hálito fétido e acariciar-lhe a pele manchada de excrementos, com o enlevo de quem preserva um tesouro imensamente querido ao coração...


O silêncio era apenas cortado, de vez em vez, pelos movimentos da enfermeira que vinha fiscalizar o soro a descer no braço, gota a gota, ou aplicar injeções, segundo os avisos médicos.


O dia avançava. Três da tarde. Calor. Para Cláudio, as horas assemelhavam-se a correntes que arrastava no cárcere do remorso. A noção de isolamento agigantou-se-lhe no espírito. Voltou ao
telefone e procurou por Marina.


A filha atendeu. Palestraram.


Cientificara-se do acidente por Dona Márcia; no entanto, esperava que a ocorrência desagradável não passasse de susto. Não, não lhe era possível comparecer no hospital. Dona Beatriz, que passara a considerar igualmente por mãe, piorara muitíssimo.


Aguardava-se-lhe o fim, a qualquer hora. Que o pai a desculpasse; entretanto, admitia que a irmã devia estar satisfeita ao saber-se assistida por ele. Impossível pedir mais.


Nogueira regressou ao quarto, esmagado pelo desânimo.


Ninguém para migalha de apoio, ninguém a entender-lhe o suplício moral.


Às cinco, no entanto, alguém apareceu, um velho que solicitara a recomendação de clínico prestimoso.


A sós com Nogueira, apresentou-se.


Era Salomão, o farmacêutico.


Declarou-se amigo da moça acidentada. Estimava-lhe a lhaneza de trato, apreciava-lhe as gentilezas. Vizinho da loja, partilhava com ela o café, quando obrigado ao lanche fora de casa.


Surpreendera-se com a notícia do atropelamento e deliberara visitá-la, mesmo porque acreditava tivesse sido um dos últimos amigos que Marita ouvira na véspera.


E, diante da curiosidade e do reconhecimento do interlocutor, narrou quanto sabia, pormenor a pormenor.


Evidente, concluiu, que alguma desilusão recôndita lhe ditara o gesto desesperado. Recordava-se, perfeitamente, de lhe haver notado o pranto que ela, em vão, buscava disfarçar.


Teria ingerido os soporíficos que lhe dera e, identificando-lhes o caráter inofensivo, certamente que se projetara sob um automóvel em disparada...

Cláudio ouviu, chorando... Intimamente, aceitou a hipótese.


Sem dúvida, a filha não pudera sobreviver ao insulto de que ele próprio se acusava. Aquele desconhecido confirmava-lhe as impressões.


Refletiu no suplício moral da jovem humilhada, antes de se lançar ao gesto infeliz, sentiu-se o mais abjeto dos homens, no arrependimento que lhe azorragava todas as fibras da consciência, e agradeceu ao interlocutor, sofreando os soluços.


Abraçou Salomão, num impulso de louvável sinceridade, e salientou que ele, o visitante gentil, era o verdadeiro e talvez o único amigo daquela criança que procurara a morte e que tudo fariam para reaver.

O farmacêutico apiedado arriscou um alvitre.


Confessou-se espírita e assinalou que os passes, sob a cobertura da oração, beneficiariam a menina prostrada.

Ignorava quais os princípios religiosos de sua família; entretanto, possuía um amigo, o senhor Agostinho, a quem poderiam recorrer. Confiava na prece, no amparo espiritual. Se Cláudio permitisse, buscá-lo-ia. Nogueira aceitou com humildade.

Afirmou-se sozinho. Não lhe seria lícito recusar um auxílio que lhe era oferecido com tanta espontaneidade.

Apenas admitiu que se via na obrigação de rogar o consentimento das autoridades.


O facultativo, que lhes atendeu ao chamado, ouviu a petição.


Homem experimentado em angústias humanas, fitou Marita, não só com a inteligência do técnico que observa um aparelho, a caminho do desmonte para verificações finais, mas também com o sentimento de um pai afetuoso, e asseverou que Cláudio dispunha do direito de prestar à filha a assistência religiosa que desejasse, e que, em se abstendo de ferir o regulamento da instituição, fora do quarto, ali estava como em sua própria casa.


Compadecido, ele mesmo favoreceria a vinda de Salomão com o espírita que indicasse. E, às oito da noite, o boticário de Copacabana entrou com o amigo que carregava pequeno pacote, em que se encontrava um livro.


Nogueira espantou-se. Aquele homem, que o saudava fraternalmente, e que lhe era apresentado por senhor Agostinho, freqüentava o banco, onde se alinhava entre os clientes mais respeitados.


Conhecia-lhe a posição de comerciante distinto, conquanto não lhe desfrutasse a intimidade.


Entretanto, se o recém-chegado o reconhecia, não dava qualquer mostra.

Interessou-se delicadamente pela moça e inteirou-se de todas as minudências do desastre, com as atenções de quem escuta a própria família.


Logo após, entre Cláudio e Salomão, orou, emocionado. Suplicou a bênção do Cristo para a menina atropelada, qual se expusesse, diante de Jesus invisível, uma filha profundamente cara, e, em seguida, ministrou-lhe passes de longo curso com o devotamento de quem lhe transferia as próprias forças.


Cooperamos com ele, sob o olhar penetrante de Moreira, que tudo anotava como que sequioso de aprender.


A operação, saturada de agentes reconstituintes do plano físico, infundiu grande bem à moça, melhorando-lhe a condição geral. Relaxou-se-lhe mais intensamente o esfíncter da micção, a respiração desoprimiu-se e conseguiu entrar em sono calmo.


Cláudio solicitou a presença da enfermeira e, enquanto a serviçal modificava a rouparia, os três conversaram em saleta próxima.


Informado, então, de que Nogueira jamais tivera contacto com princípios religiosos, Agostinho ofereceu-lhe o livro que trazia, um exemplar de “O Evangelho segundo o Espiritismo”, e prometeu voltar na manhã seguinte.

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